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Código Forte

No Código Forte entrevistamos pessoas. Pessoas que se entregam com convicção a projetos, ideias, ações. Pessoas empenhadas na construção de soluções melhores para os diversos desafios actuais e que preservem um futuro digno e sustentável para as gerações vindouras.

Alfredo Cunhal Sendim

Montado do Freixo do Meio

Alfredo Cunhal Sendim

Montado do Freixo do Meio

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No Código Forte entrevistamos pessoas. Pessoas que se entregam com convicção a projetos, ideias, ações. Pessoas empenhadas na construção de soluções melhores para os diversos desafios actuais e que preservem um futuro digno e sustentável para as gerações vindouras.

A Herdade do Freixo do Meio tem sido, há vários anos, uma espécie de laboratório onde experimentam desde novas formas de produção mais consonantes com os ciclos naturais, a práticas de sustentabilidade social e económica pioneiras. O que é que move essa procura? O que é que vos levou a deixar sistemas mais convencionais, mais consensuais e mais fáceis e a investir neste caminho?

O que levou a essa lógica, de aproveitar esta oportunidade para experimentar, foi a constatação do facto de, em vários campos e várias dimensões, não termos alcançado uma realidade minimamente satisfatória, do nosso ponto de vista. Quando digo nosso refiro-me, essencialmente, numa primeira fase a uma lógica familiar e numa segunda fase a uma lógica mais coletiva. Quer no campo da ciência agronómica, quer no campo social, quer em muitas outras frentes, como por exemplo a dos desafios com que nos deparamos pelas alterações climáticas ou a perda de biodiversidade, nós não encontrámos ainda soluções capazes e então essa é a razão que nos leva a não nos esquecermos que secalhar a nossa primeira missão, em paralelo com assegurar alguma estabilidade no dia-a-dia e asseguramos os mínimos, passa por procurarmos uma vida melhor e a forma de o alcançarmos entre todos, como um desígnio comum. No fundo é uma ideia de desenvolvimento. Nós não chegámos ainda a um patamar onde possamos estar sossegados, quietos, então temos por obrigação experimentar, numa lógica de tentar encontrar soluções melhores, é essa a razão fundamental.

Também é importante enquadrar isto na história. Mais concretamente, a geração da minha família que fez isto, numa lógica de continuidade, foi depois interrompida pela revolução do 25 de Abril e há uma geração nova, começada com a minha mãe, que assume a responsabilidade de novamente ser dono destas terras. Nessa altura, há também uma chamada, a todos os níveis, de pensar «assumir mas como? O que é que vamos fazer?». Evidentemente começámos a fazer tudo o que era dominante na altura, mas rapidamente percebemos que todos os modelos e uma série de questões económicas ou produtivas, mas também técnicas e sociais, não eram satisfatórias para nós, daí a necessidade de procurar criar outra coisa.

O projeto que desenvolvem agora, o Montado do Freixo do Meio, procura recriar uma agrofloresta. Porquê uma agrofloresta, quais os benefícios deste modelo na gestão do ecossistema e como é que se constrói um sistema assim?

A agrofloresta não é uma novidade. Existem muitos sistemas de agrofloresta e o primeiro sistema que nós conscientemente adoptámos neste projecto do Montado do Freixo do Meio foi o sistema de montado. O sistema de montado é em si mesmo uma versão de agrofloresta, digamos assim. Existem muitos modelos de agrofloresta e este foi o que nós readoptámos, porque já tinha sido aqui instalado durante muitos anos, porventura desde o neolítico - para mim o montado começa muito lá atrás embora nós só lhe demos nome e olhemos para ele como um sistema na baixa Idade Média - e nós em 1990, depois de uma falência, do nosso ponto de vista, do modelo químico-mecânico, decidimos regressar ao montado e sem sabermos estávamos a regressar à agrofloresta e ao mesmo tempo à agroecologia. A agrofloresta do montado é um modelo que tem normalmente apenas três estratos, o estrato arbóreo, o estrato arbustivo e o estrato de pastagem. É um modelo que combina a floresta com produção agrícola e com produção animal e é importante perceber que nós, durante estes trinta anos em que voltámos a implementar este modelo, sentimo-nos muito seguros com ele. No entanto, fomos descobrindo a existência de outras abordagens à agrofloresta, nomeadamente uma coisa muito interessante, que foi perceber que, pela primeira vez, há uma capacidade do mundo ocidental de conceber uma abordagem agrícola de relacionamento do homem com aquilo que o rodeia que permite a evolução natural, a sucessão natural do ecossistema. Este é um modelo desenvolvido há meia dúzia de anos pelo Ernst Götch, trabalhado por muitos outros, mas essencialmente por ele, que mostra o estado de não evolução em que nos encontramos, em que só agora percebemos que a natureza é evolutiva e todos os nossos modelos agrícolas de alguma maneira colidem com essa evolução. Este modelo de agrofloresta [do Freixo do Meio] é muito específico, chama-se agrofloresta de sucessão dinâmica, é uma coisa diferente do Montado e é apenas uma linha de investigação, de experimentação, que estamos a adoptar no Freixo.

É importante perceber que a base da nossa agrofloresta é, e continuará a ser, o legado do montado, sendo que este e outros modelos de agrofloresta, como por exemplo o uso de corta-ventos, as sebes com árvores, são também muito conhecidos entre nós e abandonados há pouco tempo. Enfim, o alley cropping, as estruturas de terreno com faixas de árvores e faixas agrícolas são outras modalidades, mas o que nos parece central é a agrofloresta independentemente da modalidade. E só para terminar, a agrofloresta do montado é um sistema que está essencialmente dominado, é conhecido por nós, sempre com desafios ligados com a tecnologia, mas queremos, para lá dessa base que nos dá muito conforto, experimentar outros modelos de agrofloresta. «Então, mas porquê a agrofloresta?» Porque é, no nosso entender, a visão mais evoluída da relação do homem com a natureza, digamos assim, para não adjetivar de outra maneira. Baseia-se em duas regras básicas do nosso planeta, e quando falamos de agrofloresta estamos a falar forçosamente de agroecologia e a agroecologia é muito mais do que uma ciência, também é muito mais do que uma causa social ou uma prática ancestral, é essencialmente uma ética. Uma ética em que o Homem não pensa em criar o seu plano, mas sim em servir um plano pré-estabelecido que está no planeta que o criou, digamos assim. Essa ética é muito importante porque é ela que origina tudo. Dentro da agrofloresta, essa ética é o mais importante, há uma tentativa de compreensão de como é que o nosso planeta funciona e destacaria duas linhas básicas: Por um lado, a reflorestação. Não podem existir terrenos sem árvores! Sempre que existe um m2 sem uma árvore, nós, humanos, estamos a dar um tiro no pé, se não na cabeça, por razões óbvias que ainda não percebemos. Neste planeta, o motor, o centro nevrálgico de todo o funcionamento do plano da vida, está ligado a um tipo de ser do reino vegetal que se chama árvore, por uma série de razões. O segundo pilar é um pilar de diversificação. Todo este sistema funciona por comunidades relacionadas entre si e portanto, temos que perceber isto, perceber o efeito da falta de um elemento na comunidade e que sem qualquer conhecimento não podemos correr o risco de brincar com os elementos porque as consequências são completamente imprevisíveis e muito fortes, o que nesta lógica de poder da agricultura antropo-centrada ainda não percebemos. Por isso, esta questão da diversidade e deste respeito pela complexidade dos sistemas é absolutamente fundamental e marcante na agrofloresta. E eu diria que, doutra maneira, muito mais do que agrofloresta, aquilo em que nós de alguma maneira trabalhamos a sério nos últimos anos, sem dogmas, é na ideia de reflorestar, a diferentes estratos, não só o dossel. É bom perceber que o montado é um sistema de agrofloresta extraordinário, mas não é compatível, no meu entender, com a evolução dos ecossistemas, nunca chegará ao clímax. Daí entusiasmar-nos imenso experienciar - o que estamos a fazer aqui a várias dimensões - outros modelos de agrofloresta, mas que sejam compatíveis com a evolução dos ecossistemas e que nos possam levar a ecossistemas muito mais eficientes e muito mais produtivos. Neste caso estamos a falar da agrofloresta de sucessão dinâmica, a que também chamam agricultura sintrópica, mas não gosto desse nome porque a sintropia supõe outras coisas que não modelos agrícolas.

Só para acabar, diria que a grande linha condutora, mais do que a agrofloresta é a ética da agroecologia. Nós aqui, o que tentamos verdadeiramente seguir, é a hipótese de perceber que sistema existe e como podemos servi-lo, o que é muito diferente de pensarmos em quais são as nossas necessidades, que sistema vamos montar e como vamos supri-las, que é basicamente o que o homem tem feito nos últimos 4000 anos. Diria que daí advêm regras básicas, como não ser possível viver neste planeta sem árvores, sem diversidade. Não é possível andar a matar espécies, ou decidir que espécies é que nos convêm e que espécies não nos convêm a cada momento, se cá estão é porque estão aqui para fazer alguma coisa, por muito que o Homem já tenha alterado tudo isto. A lógica de raciocínio subjacente é muito diferente.

Pensa que este modelo de agrofloresta, em diferentes escalas de estratificação - ou os seus princípios - pode ser utilizado para construir um qualquer sistema de produção de alimentos, ou seja, ser adoptado de uma forma transversal, independentemente das condições edafo-climáticas?

Eu não tenho dúvida, quer dizer, tenho dúvidas sobre tudo, mas com base nos dados que temos na mão há uma coisa evidente. Nós recebemos este planeta e quando estávamos mais ou menos a meio da nossa viagem como espécie por este planeta, há cem mil anos, tínhamos o planeta 80% em clímax. Ele nunca estará sempre em clímax como é evidente, porque é cíclico e portanto o clímax tem um fim também e volta ao ponto zero. Agora, a questão da quantidade de ecossistemas que estão em que posição na sucessão é muito importante, porque um ecossistema em deserto, por exemplo, não produz e não tem a mesma eficiência na produção de energia do que um ecossistema em clímax e alguns estudos apontam, de forma evidente, para que até o drama actual dos 8 biliões de pessoas, é um drama apenas por causa da situação em que os ecossistemas se encontram. Se nós tivéssemos os ecossistemas em clímax, ainda por cima com a introdução da capacidade humana por exemplo na domesticação, temos planeta para muito mais milhões de pessoas, em termos conceptuais de produção de alimento, sem comprometer os ecossistemas e a trabalhar num fruto permitido. Agora há uma coisa clara, que só agora percebemos no ocidente, que é que os nossos modelos de interação com os ecossistemas, seja para produzir alimentos ou outro tipo de recursos, não podem de alguma maneira bloquear o funcionamento e a evolução desses mesmos ecossistemas. Isso é uma coisa que só há pouco tempo percebemos e que é de alguma forma dramático, porque de cada vez que fazemos mais agricultura e cada vez que somos mais pessoas neste planeta, vamos tendo menos ecossistemas a produzir e vamos tendo cada vez mais estados iniciais de ecossistemas, muito próximos do deserto. Não quer dizer que seja um deserto, aquilo em que pensamos quando vemos um deserto em termos funcionais, em termos produtivos é um deserto e isso é algo que obviamente nos limita e constitui um grande desafio. Temos que conseguir mudar a nossa relação com os ecossistemas, conseguindo suprir as necessidades que temos sem os abalroar, digamos assim, sem rebentar com eles, sem os destruir e o caminho que seguimos para isto chama-se agroecologia, mas é um caminho que tem de ser muito desenvolvido ainda, embora seja um caminho ancestral. Os princípios e as práticas todos nós os conhecemos, mas entretanto temos de saber aplicá-los ao estado de deserto em que estamos, com a tecnologia que temos e com os 8 biliões de pessoas que temos para alimentar. Mas atenção, que a agroecologia ainda parece que alimenta, neste planeta, mais pessoas que o pacote químico-mecânico antropocentrado. Mas temos que perceber também qual a relação de área do nosso planeta para com essas pessoas, porque essa agroecologia tem um nível de tecnologia muito baixo. «Porquê?» Porque aquilo que chamamos ciência, está no mundo ocidental, onde não se faz agroecologia, portanto nunca se quis saber da agroecologia para nada. Há aí uma lacuna de investigação brutal.

Então, por um lado, há o desafio de conseguirmos dotar a agroecologia de capacidade, que não há nenhuma razão para não acreditar que a tenha, para poder alimentar esta quantidade significativa de irmãos que temos no nosso planeta. Por outro lado, há uma coisa que é evidente, se pensarmos um pouco nessa questão, que é que, mesmo que adequemos a agroecologia e vamos conseguindo fazer as coisas sem tantos danos para o ambiente, vamos ter que folgar o planeta, porque o planeta vai ter que passar do deserto em que está para o clímax e isso, pensando em mais tecnologias milagrosas ou não, não vai ser fácil sem ele folgar. Para isso acontecer sem nos despedirmos de uns milhões de seres humanos, vamos ter de ser muito assertivos e inventivos. É esse o dilema em que estamos e é esse o dilema do Freixo do Meio. Somos um bocadinho pequenino deste planeta mas o dilema é exatamente o mesmo. Nós neste momento alimentamos a partir daqui muito menos pessoas do que devíamos alimentar, temos consciência disso. Estamos num processo de regeneração, que quando falo em folgar o planeta não é mais do que regenerar os ecossistemas. As pessoas perguntam-me o que é isso. Isso é criar solo, é criar novamente nichos para que as espécies que lá fazem falta possam lá estar, é criar estratos de árvores porque aquilo que produz eficientemente não são as ferramentas do sistema ridículas que nós andamos a comer. As plantas primárias são ferramentas do sistema, os animais são ferramentas do sistema, não são o motor, o motor do sistema são as árvores. Basta olharmos para cada uma das coisas e percebermos a eficiência da transformação da luz em matéria destes três seres, das bactérias e dos fungos também. As árvores são obviamente, o cerne. Nós olhamos para as árvores como seres ornamentais e como formas de produzir papel, ou uns frutos interessantes para a sobremesa, ainda não percebemos que temos de nos alimentar de árvores. É este tipo de desafios que nos leva a responder que, perante isto, nós não podemos estar só a fazer a nossa vidinha, temos de fazer algo mais que é participar na solução. Nós nunca tivemos ideias próprias, devo dizer isso, o que tentamos é investigar a realidade que pisamos e perceber por onde gostávamos de sonhar e depois vamos encontrar hipóteses de trabalho que tentamos essencialmente experienciar, seja a nível técnico, seja num nível mais social ou de outras experiências.

A produção sustentável tem-se tornado cada vez mais um chavão e está sempre na ordem do dia. Ouvimos falar de produção mais próxima dos cidadãos, menos consumista e associados a ela surgem conceitos que são muito diversos, muitas vezes um pouco amalgamados entre o que é um sistema de produção e o que é um sistema de comercialização e ouvimos falar em circuitos curtos, em agricultura biológica, agroecologia, permacultura, certificações diversas. Não corremos o risco de estar a dispersar a atenção e por consequência dispersamos também a ação? Em vez de criarmos uma competição entre conceitos não devíamos estar a agir de uma forma holística mas muito rápida em que casamos estas visões de forma a termos uma ação consistente independentemente do conceito?

O mais possível, estou totalmente de acordo com essa visão. Para já o problema tem uma dimensão que não pode deixar ninguém de fora. Não sei quem dizia isso, mas quando os problemas são grandes demais para a nossa capacidade, a única maneira é juntarmo-nos todos e contarmos com todos para os resolvermos. O problema passa muito pelo que já abordámos aqui. Temos uma questão óbvia, que é a da urgência climática, para além da urgência da biodiversidade, os problemas gravíssimos, de que ninguém fala, do ciclo do azoto ou do fósforo, portanto quando o problema é grande demais temos que nos juntar todos e nós não temos sido capazes de fazer isso, infelizmente. À primeira tentativa começamos a acusar-nos uns aos outros e à sociedade e essencialmente, quem tem o poder na mão, mesmo não o sabendo, está completamente a leste e não tem consciência, isso é o pior porque assim não há fórmula para acertar.

Eu diria que é evidente que existem coisas que temos que pôr claramente na equação, algumas delas são duras para nós, uma delas é que a agricultura químico-mecânica está falida, não tem mais hipótese. Não venham com agricultura de precisão, com chavões que não querem dizer nada. É preciso ter a humildade para percebermos isso, é preciso reconhecer que a agricultura do pacote tecnológico, da revolução verde, ajudou imenso a humanidade, é preciso agradecer-lhe mas é preciso acabar com ela, por razões evidentes. Acabar com esta ideia de não querermos desmontar a negociata em que estamos montados só porque não queremos ter a humildade de chegar ao fim da vida e dizer que tudo aquilo que fizemos não tem futuro, teve passado e com certeza teve presente, mas não tem futuro. O homem é mesmo assim, é orgulhoso e ego-centrado e todos os professores que continuam a afirmar a mesma coisa não são capazes de, perante os dados, ter a humildade de dizer que isto já não nos serve, isso é um facto. Portanto, para lidar com isso vamos provavelmente ter de esperar que novas gerações venham. Esse é um elemento que devia estar em cima da mesa, porque esta agricultura não pode ser terminada de um dia para o outro, porque as revoluções sempre foram piores do que as reformas, mas é preciso uma reforma clara, corajosa, para pôr fim a isto, porque aqui estamo-nos a matar, por muito que alguns estejam no imediato a beneficiar vamos perder todos. Aqueles que estão a beneficiar disto e não querem largar não estão a ver a coisa de forma correta porque mais tarde ou mais cedo estão a subir África com um saco plástico na mão como os nossos amigos estão agora a fazer. Isto de pensarmos que só acontece aos outros é o maior disparate que há. Este é um ponto importante.

Outra coisa importante é perceber que a agricultura, hoje, em Portugal não alimenta praticamente ninguém, é um negócio económico do país e portanto, enquanto coletivo, temos de perceber se estamos disponíveis para acabar com esta negociata e se estamos disponíveis para abdicar destas divisas que entram e que servem para coisas que fazemos em conjunto e se preferimos pensar em cuidar do nosso território para que dentro de dez anos possamos aqui viver, já nem estamos a falar de outra escala. Esse é outro elemento que parece não estar assumido na sociedade. A maioria das pessoas, ainda que não o expressem, perante a incerteza de poder estar cá dentro dos próximos dez anos, prefere não largar o osso.

Há outras coisas, como por exemplo a agricultura de proximidade, sobre a qual sabemos que tudo aquilo que comemos à porta de casa nos permite ter segurança, já nem falando de questões energéticas, ou climáticas. As pessoas ainda não perceberam que o risco de ficarem sem comida amanhã é muito elevado e continuam a não perceber, perante uma pandemia, acham que isto está tudo assegurado. Isto está tudo atado por arames.

Depois também há uma outra coisa que é a afirmação da agroecologia, mas de uma forma muito pouco consistente, com toda a frontalidade, com poucas soluções na mão, com poucas soluções verdadeiramente convincentes. No meio disto tudo temos a sociedade, que não quer saber disto para nada, que acha uma chatice pensar nisto, ao mesmo tempo que temos as pessoas que estão no sector, quer sejam os empresários, quer sejam os cientistas, completamente centrados nos seus problemas a não perceber nada do que está a acontecer à volta e portanto a baralhar a cabeça das pessoas.

Temos um debate muito pouco esclarecedor, muito confuso e que não nos vai ajudar a resolver este problema. «O que poderíamos fazer para que isto mudasse?» Agarrar o debate verdadeiro que parece que esta sociedade não está interessada em fazer.

Isso vem no sentido da minha próxima pergunta. Ouvimos recorrentemente referir dados científicos. Num contexto em que a ciência nos chega, com frequência, duma forma fragmentada e dogmática, podendo apresentar dados parciais ao abordar as questões, aliada a uma iliteracia científica bastante grande e a muita desinformação, isso não acabará por afastar as pessoas dessa consciencialização e dessa responsabilização pelo futuro comum? As pessoas já estão alheadas dos ciclos naturais, já não têm uma ligação essencial ao planeta, aos territórios, à terra, e esse reforço duma ciência instrumentalizada não virá dar-lhes uma sensação fictícia de segurança, o que torna o processo mais complicado?

Estou totalmente de acordo. Uma das questões práticas é de que nos fomos afastando do sistema natural. Nesta visão da agroecologia, em que o sistema natural é um macro-organismo a que pertencemos e que nos criou de alguma maneira para fazermos parte dele, enquanto nos vamos afastando desse sistema, o que fazemos é afastarmo-nos de nós mesmos essencialmente e porventura, quando nos afastamos de nós mesmos, vamo-nos perdendo. Hoje em dia não há dúvida que nós estamos todos muito afastados da essência do funcionamento do sistema natural, estamos todos numa nuvem que fomos criando, numa bolha, criada essencialmente pela nossa imaginação. Essa nuvem vai-nos afastando da realidade e dificulta que tomemos boas decisões. Estou completamente de acordo com a visão sobre a forma como lidamos com a ciência, que neste campo agrícola está completamente manipulada. Basta perceber como é que as universidades funcionam, quais são os interesses por detrás das universidades. A ciência muito recente do sistema terrestre menos, mas as ciências alicerçadas há mais tempo, estão muito dominadas por interesses, portanto há muito pouca investigação contrária e o que ouvimos é uma ciência manipulada e como não queremos mais pensar no problema e queremos comprar a solução, compramos a solução errada. Isso é grande parte do momento que vivemos, sem dúvida. Se as pessoas se aproximassem da natureza provavelmente iriam, entre outras coisas, perceber tudo isto melhor e iriam encontrar-se com elas próprias, mas isso é outra história. Mas estou absolutamente de acordo que esta falsa ciência não nos vai ajudar a resolver este problema.

O Freixo do Meio está localizado no Alentejo e procura melhorar o ecossistema ancestral de Montado à luz de tudo o que se sabe sobre a importância de gerir ecossistemas considerando as suas múltiplas relações e impactos. O conhecimento está disponível e as consequências do modelo que temos seguido na exploração dos recursos do planeta são incontornáveis. Ao olhar para o Alentejo, onde as culturas industriais têm sido incentivadas na Política Nacional para o Regadio, concentrando grandes áreas de monocultura associadas à destruição de sistemas agro-silvo-pastoris, com um impacto devastador nos solos, na biodiversidade, nos aquíferos e até sociais, como vê esta disparidade?

Há muita desinformação. Evidentemente que há bondade e assertividade em tudo, mas eu queria voltar um pouco atrás. É de facto muito importante perceber que as universidades não estão a ser um pólo que contribua positivamente para a resolução destes desafios. Nós continuamos a ter aqui ao lado, na Universidade de Évora, investigadores que continuam a afirmar que se pode beber glifosato ou, quando se fala de agroecologia ancestral, a perguntar pelos “papers” científicos que permitem provar isso. Existe uma arrogância enorme perante um problema muito grave, associada a uma ausência de soluções. Há uma coisa, que nós, se quisermos ser honestos, temos que perceber e ajudar a divulgar. De facto, infelizmente, do meu ponto de vista, a agricultura convencional não tem conseguido de forma alguma encontrar soluções para os problemas que tem criado e leia-se em todas as direções, seja contaminação das águas, erosão de solos, perda de biodiversidade, problemas do carbono, problemas de saúde pública, em todas as frentes, não encontra soluções nem para 5% dos problemas que cria. Essa é uma coisa fácil de observar e que as pessoas de alguma maneira poderiam, por si próprias, se quisessem, fazer essa análise. Aqui os jogadores estão viciados.

Temos também um jogador de que ainda não falámos que é o agricultor, cada vez mais inserido numa narrativa única que é a deste pacote tecnológico, mas sem soluções e pressionado economicamente e portanto já sem capacidade de decidir coisa nenhuma, apenas disponível para aceitar o jogo que lhe é imposto. Portanto, esse também não é um elemento que esteja neste momento livre para pensar, porque está completamente subjugado a este sistema económico, tem que pagar as suas contas, as suas dívidas e não encontra nesta economia outra forma senão a da destruição e às tantas é como se tivesse o síndroma de Estocolmo, adorando o pacote que o está a destruir e à sua terra.

Hoje o perfil do agricultor, se considerarmos, por exemplo, as grandes áreas de monocultura de olival e amendoal no Baixo Alentejo, muitas vezes é constituído por um conjunto de entidades, de sociedades anónimas. Nesse contexto não existe uma ligação ao território. Quem é que pensa nas consequências destes modelos?

Esse é outro nível ainda pior, que é quando já não há um agricultor. É preciso perceber que o agricultor hoje ainda existe, do meu ponto de vista. Depois há esse nível, em que já não é alguém que tem filhos, novas gerações e existe apenas um responsável e aí já estamos num nível muito diferente e muito mais perigoso.

Mas o nível anterior, do agricultor é já de si muito grave porque ele não consegue pensar. Veja-se um agricultor, por exemplo, da zona de Beja que anda há anos e com todo o direito, a tentar desenvolver a sua exploração, a sua atividade, a sua vida e não tem outras soluções senão estas soluções. É óbvio que se vai agarrar a elas, como qualquer um de nós se agarraria, quando é a única coisa que lhe é apresentado como possível, não tendo ele capacidade para desenvolver outras alternativas por si próprio, o que não é fácil.

Em relação à questão colocada, é ainda muito mais grave e aí não podemos deixar de trazer para cima da mesa aquilo que considero a mais significativa experiência que tentamos fazer aqui, na Herdade do Freixo do Meio, que tem que ver com o exercício da propriedade sobre os ecossistemas.

É óbvio que não estamos bem deixando a gestão e a relação com os ecossistemas e as consequências que daí advêm, nas mãos de quem nem sequer conhecemos. Já nem falo na questão de ser apenas uma parte da sociedade a decidir pelo todo. Quando eu sou proprietário sozinho de 600 ha, o que a sociedade me está a pedir é isso, que eu decida sozinho sobre o destino de um bocado do nosso planeta, que vai afetar muitos seres, humanos e não só, durante gerações e gerações. A minha pergunta é se saberei tomar essas decisões sozinho, se é razoável que tome essas decisões sozinho com o nível de conhecimento que tenho ou que me falte. A questão da propriedade hoje em dia está alicerçada na sociedade e ninguém a põe em causa. Acho que devíamos começar a fazê-lo. No Neolítico a propriedade, por exemplo, era o que produzíamos e sabíamos fazer, ninguém pensava em ser dono de uma árvore, ou de um cavalo, do que quer que fosse. Não questionamos isso e então estamos a deixar que as decisões sobre esse tipo de bens sejam tomadas de uma forma completamente leviana e absolutamente imediatista, com consequências óbvias e muito visíveis. Poderia ser uma coisa subtil, mas é tão claro que é quase um acto de suicídio, apadrinhado pelos nossos governantes há várias décadas e há uma sensação de desnorte, de desespero, quase de loja em liquidação total, em que tudo está em saldo e já nada importa. Os dados também são incorretos. Claro que é melhor ter olival, ou amendoal, do que um pivot porque ao menos tem as árvores a fazer fotossíntese de forma muito mais eficiente, mas traz imensos problemas a todos os níveis. «E porquê?» Não por falta de informação. «Porque é que não vão à Califórnia ver como em vinte ou trinta anos conseguiram destruir aquele território absolutamente magnífico com estes modelos?» Então, valia a pena quotizarmo-nos todos num crowdfunding e pagarmos a estes agricultores todos, ou às populações à volta, uma vez que os fundos proprietários são cinzentos, não são de ninguém, são de especuladores, de pessoas que vão morrer ao mesmo tempo que nós mas com a ideia de ter acertado em mais raspadinhas.

«Discutir se é um americano ou um chinês que vai beber o último copo de água ou comer o último fruto deste planeta, leva-nos onde?»

Há toda uma consciência que nós não temos. Isto depois vem misturado com rasgos nacionalistas, com o discurso de desenvolver a nação, de trabalhar o país, de fazer alguma coisa, de não podermos ficar pela imobilidade do ambiente. Há uma confusão geral na sociedade e não temos conseguido ter um debate minimamente alicerçado, honesto, que nos leve à possibilidade de lidar com tudo isto de forma mais inteligente, relacionada com os resultados, porque os resultados são muito maus.

Retomando a ideia da gestão em ecossistemas e não existindo esse modelo, há de certa forma, a ideia de que se depõe a confiança e o travão a determinado tipo de intervenções nas mãos das leis, da política ou de um governo quando é eleito. Considerando isso, considerando a determinação das metas climáticas, o Pacto Ecológico Europeu (PEE), seria de esperar que houvesse essa gestão no território que permitisse criar alternativas para esses agricultores que se vêm um pouco sufocados mas não sabem que caminho seguir. Mas na realidade, como é que se compatibiliza essa preocupação politicamente expressa, que leva a criar um PEE, com o previsível aumento de 80% de áreas de olival super-intensivo até 2030, ou plano do governo de triplicar a área de estufas no Parque Natural do Sudoeste Alentejano quando já há uma reconhecida fragilidade dos ecossistemas e uma persistente escassez de água? Como é que o agricultor que quer mudar a sua prática pode ter uma linha condutora?

Infelizmente, não devia ser assim, mas aquilo o que nós constatamos e temos sentido neste projeto, é que estamos completamente nas nossas mãos. Nós, de alguma maneira, fomos criados numa narrativa que nos assegurava a existência de um Estado protetor e que deveria ser capaz. Muitos de nós ainda acreditamos nisso, assim como acreditamos que somos seres superiores, acreditamos que somos donos da terra, acreditamos em coisas que não temos razões nenhumas para acreditar, do meu ponto de vista. A nossa tomada de decisão está alicerçada em coisas que são uma fantasia. Depois há outros que acham que é o mercado que nos vai garantir tudo, vivemos nesta dicotomia entre o mercado e o Estado. Nem uma coisa nem outra. Infelizmente, um agricultor hoje, ou cidadão, está pragmaticamente nas suas próprias mãos, não pode estar à espera de mais nada, pelo contrário, tem é de perceber como é que se defende de tudo aquilo que é uma estrutura muito desviada dos seus propósitos, quer o mercado, quer o Estado. Quando temos um ministro que nos diz que quando houver problemas de falta de água para os abacates, acabamos com os abacates, podemos perceber que tipo de gestão é esta. E quando nos dizem que são só 5% da área, poderíamos comparar questionando se estão disponíveis para pôr 5% de veneno no seu corpo e logo veremos o que acontece.

Isto tudo leva-nos a constatar que estamos sozinhos, cada um por si, e cada um por si tem, em última instância, a responsabilidade que sempre teve. Não é por fantasiarmos a existência de um mercado, ou de um Estado orientado e que seja representante dos nossos interesses comuns que vamos ter menos responsabilidade. A responsabilidade, cada um, mal ou bem, de uma forma ou de outra, vai ter que lidar com ela, mas muito sozinhos.

Foi por isso que se associaram a outras famílias da Europa num julgamento contra a União Europeia, por considerarem que não está a ser feito o suficiente no combate às alterações climáticas. Que resultados esperam deste processo?

Nós temos que nos juntar, porque nós somos seres sociais, como quase todos os seres e portanto quando estamos sozinhos sentimo-nos mal e menos encorajados, então temos de encontrar outros seres que pensem e atuem da mesma forma que nós. O que pretendíamos era de alguma maneira ter uma esperança, que se vai perdendo, nesta coisa que chamamos Europa. O caminho é pôr o império de parte, é nós percebermos que este planeta é uma nação e que provavelmente devia ser uma nação constituída com base nas regras do que já cá estava e não pelas regras da nossa cabeça. Há um livro muito interessante chamado “A nação das plantas” do Stefano Mancuso, que aconselho a toda a gente, mas não percebemos ainda isso.

O caminho é, de facto, percebermos que temos que sair desta parolice da portugalidade para ir para uma governação mundial e porventura faria sentido fazer isso por etapas. Isto para dizer que a construção da Europa faz sentido nesta linha de pensamento. A Europa é uma instituição que prometeu uma coisa e que pactuou uma coisa com os cidadãos, nomeadamente em relação às alterações climáticas e não cumpriu. Quando faço um pacto consigo e executamos ações derivadas desse pacto é óbvio que, se uma das partes não faz o que disse que fazia, compromete as ações do outro e foi isso que aconteceu em muitos casos agrícolas na União Europeia (UE). E quando isso acontece é bom que haja uma instituição para discutir estas questões. Ainda por cima porque a UE se reveste, a nível mundial, dos maiores cuidados com tudo e tem instituições que permitem contestar quando há diferendos entre as partes e foi por isso que escolhemos as instituições europeias, nomeadamente o Tribunal Europeu para discutir isto. O que constatamos é que é um jogo muito hipócrita porque as instituições nem sequer respondem àquilo que nós perguntámos, sobre onde é que podemos discutir isto. Respondem-nos só que não é aqui ou alie que não sabem onde é e mandam-nos embora. E quando pedimos os argumentos jurídicos, estes não existem. Se formos ver a argumentação, é ridícula. A argumentação de corredor, por outro lado, é a de que até há razão nas alegações, mas de que se se abrissem essas causas apareceriam milhares de cidadãos com queixas. Esta é a gestão ao mais alto nível na UE. É preciso que tenhamos consciência e não nos enganemos ao pensarmos que estamos a lidar com instituições sérias e capazes. A UE, neste momento, do meu ponto de vista, está absolutamente dominada pelos interesses imediatistas dum capitalismo turbo-selvagem a que temos de pôr fim, porque nos vai matar a todos. O que vem atrás desse desnorte é a imposição chinesa e ainda não percebemos bem do que estamos a falar.

O que é que faz falta para mudarmos de paradigma, para passarmos de consumir e produzir muito e rápido, para consumir e produzir o essencial, compreendendo e integrando nesta equação também as necessidades dos sistemas naturais e a justiça social global?

Faz falta pararmos para pensar. Faz falta pensarmos no que estamos aqui a fazer. Faz falta não estarmos apenas a contar as lagostas que vamos comer até ao fim da vida ou desejaríamos comer e que só nos vão fazer mal e que vão perturbar os ecossistemas de onde elas vêm. Faz falta tudo isso. Agora, não é razoável pensarmos que isso vai acontecer porque as pessoas não têm tempo para pensar, as pessoas estão escravizadas no sistema atual, como nunca estiveram e portanto não têm condições para pensar.

O que faz falta é um rendimento único incondicional para garantir às pessoas que podem parar para pensar sem morrer no dia a seguir, garantindo-lhes minimamente as necessidades básicas. Hoje em dia, a maioria das pessoas não vive, sobrevive, que é uma coisa muito diferente. É evidente que um ser vivo a primeira missão que tem neste planeta é manter-se vivo e para isso tem de sobreviver, mas aí estamos a falar de uma ética que é ensinada ainda hoje às crianças nos contos como o dos irmãos Grimm, como a do João e a da Maria, que quando se vêem sem dinheiro, o que lhes ocorre primeiro é matar os filhos. Isso é ética de sobrevivência, não é uma ética de viver. Aquilo que nos perguntamos é porque estamos há tantos anos a sobreviver, porque é que não conseguimos chegar a outro patamar, que é o patamar de quando não temos medo. Não temos medo de não ter comida, ou água, ou ar para respirar amanhã. Acho que essa é a questão essencial. Nós ao que parece, dizia hoje numa notícia, estamos a diminuir o nosso QI, o que é natural, porque se estamos ocupados a sobreviver vamos diminuir as nossas capacidades que, também é bom que tenhamos isso em conta, não nos têm trazido, a nós e ao planeta, nada de grandioso.

«Isso de acharmos que somos capazes de fazer o que mais nenhum ser é capaz de fazer, para que é que isso interessa para o projeto da vida, pirâmides no deserto ou enviar um foguetão para a Lua? Isso interessa o quê para o projeto da vida? Isso é absolutamente inútil, como a maioria das coisas que nós fazemos.»


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Ana Patrícia Fonseca
Ana Patrícia Fonseca
Presidente da Direção da Plataforma Portuguesa das Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento

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